[publicado no Portal Gaita-BH em Fevereiro de 2002]
Ulysses Cazallas é um dos tesouros vivos da cromática do Brasil, grande ser humano e um excelente papo. Uma das missões do Portal Gaita-BH é ir extraindo aos pouquinhos todo o imenso conhecimento que está guardado na mente e na história deste respeitável senhor.
GBH : Ulysses, conte-nos um pouquinho da sua história como gaitista...
UC : No meu aniversário dos 9 anos de idade, ganhei de um tio, uma gaita da Hering, modelo "Vencedora" (trêmula) e comecei soprar (gostei); nunca mais parei.
Aos 12 anos participei de um programa de rádio "Hora da Gaita" patrocinado pela Hering na Rádio Record e fui classificado em 2º, o 1º lugar foi de Omar Izar (grande amigo até hoje). Quem classificava os harmonicistas era o conhecido Kley Williams (Zesinho de Lima). Sua especialidade era a cromática. Meu pai não podia dar-me uma harmônica cromática porque ela custava $250.000,00 e o salário do meu pai também era $250.000,00 (eu não lembro, mas o dinheiro daquela época deveria ser o Réis).
Quando pela passagem do meu aniversário dos 14 anos, uma tia perguntou-me:
- O que você gostaria de ganhar como presente de aniversário?
Não deu outra. Respondi:
- Uma harmônica cromática que pisca para mim cada vez que passo na frente
daquela vitrine.
A minha tia disse:
- Arrume-se e vamos buscar seu presente.
Os cantos dos meus lábios chegaram a encostar em minhas orelhas, tal a alegria. Era uma 64 vozes da Hohner, linda, esplendorosa. Eu ainda a possuo. Essa harmônica já tem 55 anos, continua sendo linda e esplendorosa (as placas de proteção das vozes estão amareladas, quase sem o cromo original). De posse dessa maravilhosa harmônica e passado algum tempo, atirei-me de cabeça.
Estudei: Teoria Musical, Leitura Rítmica, Solfejo Rítmico, Solfejo Entoado (em 1954 com o prof. Hugo Zanda em São Paulo ), Harmonia Tradicional (em 1967 e 1968 com o prof. Osiris do Nordeste e o maestro Guerra Peixe na cidade Rio de Janeiro). Em 1984 estudei Harmonia Funcional com o ilustre prof. H. J. Koellreutter que introduziu esse conhecimento no Brasil. Merecidamente ele é chamado de mestre dos mestres.
GBH : Como foi aquele caso do programa do Ary Barroso?
UC : Em dezembro de 1953, participei de um programa de TV "Calouros em desfile" da TV Paulista, Canal 5, animado por Ari Barroso. No corredor da emissora ele menospresou a gaita perguntando-me:
- Ah! é você quem vai tocar a gaitinha?
Eu humildemente balancei a cabeça num gesto de sim. e, fui classificado em 1º lugar por unanimidade de votos. Tornei-me profissional em 1962, increvendo-me na OMB (Ordem dos Músicos do Brasil) sob o nº 11.558. Em dezembro desse ano, integrei um grupo de quatro harmonicistas intitulado "Os Harmonicistas", criado pelo ilustre Zesinho de Lima (Kley Williams) e viajamos para fazer apresentações em Manaus e em Belém do Pará. Muitas foram as apresentações realizadas por esse grupo em casas noturnas de São Paulo. Quando esse grupo se desfez procurei outros meios.
Organizei e fui coordenador musical de diversos grupos de harmônicas em São Paulo e Rio de Janeiro. Em São Paulo, "Conjunto de Gaitas Tívoli (1948) "The Harmônicas Serenade"(1949), Os Harmonipops (de Clive Popelbaum em 1949), Os Tangarás (1956); na cidade Rio de Janeiro "The Harmonikings" (1965). Esses grupos de harmonicistas participaram de "todos" os programas populares de TV da época e apresentaram-se em muitas casas noturnas de renome (seria impraticável descrever essas aventuras "gaitíferas" neste espaço).
De 1981 até 1997 fui músico da Orquestra Harmônicas de Curitiba. Só neste período a OHC realizou mais de 500 apresentações em público, sendo elas, nacionais e internacionais. Hoje, entre minhas atividades musicais estão: algumas apresentações, aulas, manutenção do instrumento e autoria de métodos.
A gaita com que toquei no programa Calouros em Desfile foi uma cromática afinada em Cm. O maestro Waldemiro Lenque (não sei se é assim que se escreve) disse-me que conhecia e tocava cromática mas que não sabia como eu conseguia os acordes menores e diminutos e eu lhe repondi (como um garoto idiota) estudando maestro. Ele deve estar procurando os acordes até hoje.
GBH : Você diria que viveu numa época dourada para a harmônica no mundo e no Brasil? Pq?
UC : Sim, é verdade, tive grandes momentos em uma época dourada para harmônica. Não diria no mundo, mas sim no Brasil, viajei muito e ganhei ótimos cachês por aí. Até meados de 1975 para 1980 não ouviamos falar de diatônicas (gaitas blues), quando elas eram usadas era só para fazer papel de acordes de aconpanhamentos. Essas aventuras gaitíferas aconteciam porque a concorrência era ínfima e o som do nosso instrumento sempre agradou em qualquer gênero musical. Não havia muita participação ou colaboração por parte dos harmonicistas, mas as aventuras aconteciam em grande número.
GBH : Qual foi sua melhor experiência como músico de harmônica?
UC : Algumas experiências foram sem dúvida muito boas, entretanto a melhor foi estar participando da Orquestra Harmônicas de Curitiba em uma apresentação no Teatro Guaíra em Curitiba com lotação completa 3.000 pessoas pagantes, e o povo ter quebrado a porta de vidro do teatro para poder adentrar no recinto; foi necessário a presença da tropa de choque e do corpo de bombeiros.
Fico também muito feliz quando vejo ex-alunos meus atingirem graus elevados junto ao nosso tão querido e singelo instrumento, a gaita.
GBH : Quais os conselhos que você daria, do alto de suas décadas de carreira como músico de harmônica, aos iniciantes?
UC : Deixem que o micróbio da gaita penetre em seu sangue e depois será praticamente impossível parar.
Ah! ia confundindo tudo. Aconselho que façam o trabalho de aprendizado sem nenhum estresse, sempre relaxados ao estudarem ou tocarem em apresentações públicas. E, especialmente, estudem muito, muito mesmo, dia e noite em todos os momentos oportunos, não deixe de estudar diariamente, o sucesso depende do seu esforço.
O Portal agradece a participação e aproveita para avisar aos leitores que o Ulysses é um ótimo professor e faz ótimas customizações em gaitas cromáticas e diatônicas.
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