[publicado no Portal Gaita-BH em Fevereiro de 2003]
Há uns dois ou três anos a Hohner começou a circular a notícia de que teria patenteado uma gaita de conceito revolucionário, que iria mudar para sempre o universo musical da gaita. Essa gaita revolucionária seria baseada na distribuição de notas, na dinâmica e no timbre das gaitas diatônicas, atingindo porém a cromaticidade através de “bends” em todos os dez orifícios, em ambos os sentidos.
De lá para cá muito se falou nessa gaita, muito se especulou, e uma série de boatos surgiram na net, verdadeiros e falsos. Então vamos tentar resgatar a história dessa gaita tão controversa.
Até onde pude verificar, o conceito da XB-40 de palhetas auxiliares extras para os “bends” (dobras) foi desenvolvido independentemente por diversos gaitistas como Will Scarlett, Brendan Power e Richard Sleigh. De acordo com Rick Epping, o inventor e desenvolvedor da gaita da Hohner, Will Scarlett mostrou-lhe um protótipo de uma só célula já no início da década de oitenta, mas não continuou a desenvolver a idéia.
No início da década de noventa o Rick montou um protótipo com várias células (ou orifícios) e percebeu que, ao tocar a gaita, as palhetas auxiliares de orifícios adjacentes ao tocado começavam a soar espontaneamente, o que era indesejável. Sua inovação foi então desenvolver um sistema de câmaras e válvulas que eliminam esse problema. Essa inovação gerou três patentes, e na primeira o Rick faz a seguinte declaração:
"O uso de uma única palheta auxiliar montada rente sobre sua fenda em uma célula para dobrar notas já foi sugerido antes dessa invenção e nenhuma reivindicação é feita sobre essa invenção (sic). No entanto, tal artifício é insatisfatório quando múltiplas células adjacentes são usadas em uma harmônica por causa da vibração solidária indesejada de palhetas em células adjacentes. O uso das válvulas ativadoras de palhetas elimina esse problema e torna possível a gaita melhorada dessa invenção."
"The use of a single auxiliary reed mounted flush over a slot in a cell for bending has been suggested before this invention and no claim is made to this invention. However, such feature is unsatisfactory when multiple adjacent cells are used in a harmonica because of undesirable
sympathetic vibration of reeds in adjacent cells. The use of enabler reed valves eliminate this problem and make possible the improved harmonica of this invention."
Rick Epping demonstrou publicamente seu conceito com um protótipo já em 1991, logo após ter recebido sua patente, em 26 de agosto de 1991. O desenvolvimento do produto foi tocado por ele mesmo em parceria com a Hohner. Tal parceria foi possível graças à competência de Rick, que tem uma fama fantástica como técnico de gaitas e acordeões, além de funcionar como uma ponte de comunicação entre os gaitistas americanos e a Hohner.
O desenvolvimento demorou mais do que o previsto, mas os primeiros protótipos oficiais, baseados na gaita Autovalve da Hohner, já podiam ser vistos com o Rick desde 1999. De tempos em tempos apareceram relatos de pessoas que puderam experimentar um desses protótipos nas diversas listas estrangeiras de discussão sobre gaitas na Internet. O Gaspar Vianna foi o primeiro a prestar atenção a esse modelo e traduziu os primeiros relatos para a nossa lista em português.
O nome da gaita no começo ainda era confuso. Alguns achavam que deveria ser chamada de “Omnibender”, por permitir dobras (“bends”) em todos (“omni”) as notas, ou então “Extra-bender”. Houve até discussão na Harp-L sobre quem seria o "pai" do nome, e se tal pessoa mereceria alguma recompensa da Hohner por inventa-lo. No final das contas a gaita ganhou o código XB-40, e o nome de “Extreme Bender”. XB então fica para eXtreme Bender e o 40 se dá ao fato da gaita ter 40, e não apenas 20 palhetas como numa diatônica comum. No site alemão da Hohner ela também é chamada de Bending Harp.
A base do funcionamento dessa gaita são as 20 palhetas extras (palhetas auxiliares) e o sistema de isolamento de palhetas por câmaras e válvulas. Isso porque o “bend” (ou dobrar de notas, como me referirei de agora em diante) precisa da interação de duas palhetas para funcionar. Vamos ver com mais detalhe como funciona o dobrar.
Num orifício com duas palhetas que não estão isoladas uma da outra por meio de válvulas (como é o caso na maioria das cromáticas) existe a possibilidade de se alterar para uma freqüência mais grave o tom (ou nota) da palheta mais aguda. O tanto em que se pode bemolizar essa nota mais aguda depende diretamente da palheta mais grave. Só se pode bemolizar a palheta mais aguda até aproximadamente pouco menos de meio tom acima da palheta mais grave.
Ou seja, num orifício com as notas Mi soprada e Sol aspirada (orifício 2 de uma diatônica em Dó) a palheta de nota mais aguda é o Sol aspirado. Essa nota pode ser bemolizada até aproximadamente meio tom acima da nota da outra palheta, a Mi. Portanto podemos produzir as seguintes notas: Sol, Fá # (sustenido), Fá (aspirados) e o Mi (soprado), além de todas as outras freqüências intermediárias (que não são tão importantes).
Essa alteração de tom se consegue ao se mudar o volume e formato da cavidade oral, modificando a freqüência natural ou de ressonância dessa cavidade, fazendo com que a palheta mude o seu modo de vibração para se acomodar a essa nova freqüência de ressonância, produzindo essas notas extras.
Note-se que só é possível fazer o bend em um sentido, ou seja, da nota aguda para a grave. A XB-40 revoluciona ao permitir o bend nos dois sentidos. Isso foi conseguido ao se isolar por meio de câmaras e válvulas a palheta soprada e aspirada. Além disso, cada palheta principal ganhou uma palheta auxiliar, que só soa quando a técnica do dobrar de notas é aplicada. Essa palheta auxiliar é afinada em uma freqüência mais grave que a palheta principal. A Hohner decidiu por afinar essa palheta auxiliar aproximadamente um tom e meio abaixo da palheta principal, o que proporciona dobras de um tom inteiro em todas as palhetas, com exceção da palheta aspirada do terceiro orifício, que poderá ser dobrada até um tom e meio abaixo da nota principal, como já acontece nas diatônicas normais.
Assim, ao se soprar em um orifício, as únicas palhetas em contato com o fluxo de ar são a principal e a auxiliar sopradas. Como a aspirada e sua auxiliar estão isoladas por meio de válvulas e a auxiliar soprada tem uma altura nula de palheta, permanecendo rente à placa de vozes, a única palheta que entra em movimento e por onde o ar pode escapar é a palheta principal soprada. O mesmo acontece no sentido inverso. Dessa forma se consegue uma vedação fantástica e um aproveitamento do fluxo de ar quase que completo.
Ao se tentar uma dobra (soprada, nesse caso), a palheta soprada principal continua em movimento e a soprada auxiliar entra em ação, mudando a nota desejada.
O princípio, como se pode ver, não é muito complicado. Mas é genial, e abre um mundo de possibilidades.
A mais óbvia e importante possibilidade é o cromatismo da gaita diatônica com o domínio apenas da técnica padrão de dobras. Apenas esse fato já colocará muitos gaitistas "diatônicos" para pensar, uma vez que será possível tocar qualquer coisa em apenas uma gaita diatônica (embora isso nem sempre seja desejável). Agora, para se aproveitar dessa vantagem é necessário um entendimento de teoria musical que até agora poderia ser negligenciado ao se usar a gaita no tom certo para a música. Na minha opinião esse é o maior desafio, mas que mais benefícios trará aos gaitistas, que finalmente se elevarão à qualidade de músicos (mais sobre esse tema no meu artigo para o site www.gaitabh.com de outubro de 2002 ).
Outras possibilidades serão as infinitas possibilidades de configuração das notas e dos bends na XB-40. A Hohner afinou as palhetas auxiliares para se alcançar bends de até um tom inteiro, mas nada impede que essas palhetas sejam afinadas para se possibilitar bends de maior ou menor espectro, dependendo da vontade do gaitista. Essas mudanças com certeza não virão de fábrica, mas a maioria dos técnicos de gaitas poderão fazê-las ao gosto do freguês, seja para conseguir um efeito diferente quanto para permitir passagens musicais impossíveis nas gaitas comuns.
Porém a possibilidade que gerou mais controvérsia até agora é a utilização da técnica de “overbends” ou sobredobras, como os chamarei de agora em diante. As sobredobras podem ser tanto sopradas quanto aspiradas, e aparecem sempre no sentido inverso das dobras normais, aumentando o tom tocado.
O princípio da sobredobra é travar a palheta que toca com o sentido do fluxo de ar aplicado e fazer com que a palheta inversa comece a soar, com seu tom aumentado de meio tom. Ou seja, se temos o sexto orifício de uma gaita em dó com a nota Sol soprada e a Lá aspirada, a sobredobra acontece no sentido soprado do fluxo, uma vez que a dobra ocorre no sentido aspirado. Com o sopro temos a nota Sol, ao se aplicar a técnica da sobredobra a palheta Sol é travada e quem vibra é a palheta Lá, só que agora acrescida de meio tom, ou seja, Lá sustenido.
Como isso é feito na prática foge ao tema desse texto, mas é necessário frisar que essa técnica é avançada e difícil, principalmente se comparada à dobra padrão. Por isso a invenção da XB-40, que elimina a necessidade do aprendizado da técnica das sobredobras, é tão importante.
Agora, aos que já dominam essa técnica e pretendem utilizá-la com a XB-40 resta a possibilidade de reafinar as palhetas auxiliares para permitir as sobredobras. Se as palhetas auxiliares forem afinadas para um tom acima da palheta principal, e se as palhetas principais forem preparadas do mesmo jeito que se preparam as palhetas em uma gaita otimizada para sobredobrar, aí sim seria possível utilizar a XB-40 com sobredobras.
Para os acostumados com a cromática tradicional e dominam a técnica da sobredobra, talvez isso seja interessante e mais natural, uma vez que se conseguirá aumentar a freqüência das notas, ao invés de bemolizá-las, porém a técnica continuará a ser tão difícil quanto nas diatônicas normais.
Para concluir esse texto, tentarei descrever fisicamente a gaita. Ela deverá ser tão grande como uma gaita cromática de 10 orifícios (“Slideharp” ou “Koch”), porém com o bocal de plástico. Terá seu corpo em plástico dividido em duas camadas, para possibilitar o sistema de câmaras e válvulas. Então teremos o seguinte sanduíche, começando de baixo para cima: placa de cobertura inferior, placa de vozes inferior, corpo inferior, corpo superior, placa de vozes superior e, finalmente, placa de cobertura superior. Outro detalhe que vale chamar a atenção é que as válvulas serão fixadas nos corpos, e não nas placas de vozes. Isso promete facilitar a manutenção, que será muito vantajosa, uma vez que o instrumento terá um custo aproximado de oitenta dólares ou noventa euros, dependendo de onde for comprado.
Agora falta esperar uma dessas chegar ao Brasil para eu colocar as minhas mãos e ter certeza de que tudo o que eu acabei de escrever não é um monte de abobrinhas!
Fernando Bresslau carrega umas gaitas por aí e tenta de vez em quando “tupiniquizar” os termos do palavreado gaitífero. Fotos e textos adicionais podem ser vistos em www.listen.to/fhb/xb40.html .
P.S.: Parece que vai demorar mais um pouco para vermos essa gaita ser comercializada, uma vez que a Hohner está dependendo de ferramentas de palhetas novas para começar a produção. A loja Harpdepot.com, que declara ser o primeiro cliente na lista da Hohner, mandou uma mensagem para seus clientes no dia 03 de março de 2003 dizendo que, mesmo tendo prometido a entrega para meados de fevereiro a início de março, poderia apenas começar a pensar em entregas para meados de abril de 2003. Haja paciência!
Comentando sobre a XB-40, ela já esta em produção. Está saindo pelo preço de 80.00 dolares(sem taxas); e pode ser encontrada no site americano www.musiciansfriends.com
ResponderExcluireu mesmo comprei uma em dó e outra em fá. A sonoridade em bem diferente. Ainda em fase de adaptação...
abraço a todos
nao vejo a hora de chegar...
ResponderExcluiralias ja chegou rs